segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Eu sou um pandeiro




uma das coisas que se aprende ao ficar mais velho é saber que não se pode lutar contra a vontade dos outros. dos esforços, o mais inócuo. porque por mais que você lute, a vontade do outro sempre é suprema. agora, ou depois, ela prevalece. e das batalhas, essa você sempre perde. melhor bater em retirada. 

e não é covardia, é da coragem de saber que por mais munição que a vida tenha te dado, ela nunca será muita, e ela  nunca será reposta por qualquer que seja a tropa de apoio que venha ao seu encontro. e você entrincheirado, sabe que o melhor é abandonar o fuzil e esquecer a guerra. 

e não é o cinismo que nos consola quando se fica mais tempo por aqui. ficar mais velho não é só pensar que os anos é só uma das voltas que a terra dá em torno do sol, porque você sabe que as vezes você é aquele sol. e você também tem aquele girassol mais belo do campo que te encara e te segue no céu, do seu nascer ao seu poente, pra durante a noite pesar suas pétalas e chorar com o orvalho fino, e acordar e levantar o rosto e continuar a te encarar e te seguir pelo céu novamente. 

mas as vezes existem as nuvens. e por mais que você ainda seja o sol, um reator nuclear infinito em tamanho em calor em energia em poder, aquele leve vapor de água, que fluido, fofo, branco e vaporoso vai te encobrir, vai te esconder, vai te deixar por trás do esquecimento.

e você caminha sob a lua então. e caminha e caminha. e vai pensando e escrevendo isso na sua cabeça. mas não sabe mais se isso você cria ou se isso sempre esteve aqui. embolado como fios. Como o novelo caótico que são as coisas que você esconde. e por um acaso aquilo puxa o fio e traz aquele cabo desencapado que dá choque. e choque. e choque. e aquilo te repuxa os músculos e te convulsiona as coisas. e dá uma clareza, e te embola, e te anestesia. e assim você não sente aquela dor que corta, que rasga que arranca. sim, arranca. e arrancado de coisas você segue andando, acende um cigarro, sente o pé no chão doer e o cansado das pernas e o sangue subindo e circulando e pulsando em cada veia.

e as veias, que aumentam de calibre nesse momento, te mostram que sim, você ficou mais velho e saiu de mais uma batalha com todas as cicatrizes que você mereceu. as rugas que você ostenta ou esconde são cada uma delas uma historinha. e você conta como você ganhou aquela marca de batalha, e você relembra depois de um tempo e daí você nem é mais aquele covarde que parecia ter fugido como um cagão da guerra, mas talvez é o herói. ou talvez o vilão orgulhoso. ou talvez você é só você, com uma história a mais pra contar.

e a sua pele esticada é como um pandeiro tocando um chorinho daqueles bem tristes, descompassado porque as mãos estão duras, está frio, você está cansado. e tam tam tam você segue, sambando e caindo. bamba. sabendo com quantos sambas se faz um homem, com quantos compassos se bate a macumba que te faz vivo.

e vivo você vive e assim viverá até não poder mais. cada dia um dia como outro qualquer. uns melhores, outros piores, mas estatisticamente os mesmos. ou não. a matemática pouco diz dessas coisas que não se resumem à uma formula. ou quem sabe esse teorema é apenas mais um poincaré velho e esquecido que ninguém nunca resolveu. ninguém sabe, ou ninguém nunca me disse, e pra confessar, nunca fui bom com números.

mas eu olho esses números no calendário e sei que é quase meu aniversário. 

e eu envelheci de repente.


Por Raphael Nascimento






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