terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Nós gatos já nascemos pobres

Porém, já nascemos livres...


                            Maria Liliblina


Li "Come As You Are - A História do Nirvana" e Kurt Cobain dizia se identificar com as tartarugas. Elas parecem seres resistentes e fechados em si por sua carapaça, mas são extramente frágeis na verdade. Talvez seja exatamente o que acontece comigo. Uma identificação com os pequenos felinos. Vai aí a transcrição da "Ode aos gatos" 

Bichos polêmicos sem o querer, porque sábios, mas inquietantes, talvez
por isso. Nada é mais incômodo que o silencioso bastar-se dos gatos. O
só pedir a quem amam. O só amar a quem os merece.
O homem quer o bicho espojado, submisso, cheio de súplica, temor,
reverência, obediência. O 
gato não satisfaz as necessidades doentias
do amor. Só as saudáveis.

Lembrei, então, de dizer, dos gatos, o que a observação de alguns anos
me deu. Quem sabe, talvez, ocorra o milagre de iluminar um coração a
eles fechado? Quem sabe, entendendo-os melhor, estabelece-se um grau
de compreensão, uma possibilidade de luz e vida onde há ódio e temor?
Quem sabe São Francisco de Assis não está por trás do Mago Merlin,
soprando-me o artigo?

Já viu 
gato amestrado, de chapeuzinho ridículo, obedecendo às ordens
de um pilantra que vive às custas dele? Não! Até o bondoso elefante
veste saiote e dança a valsa no circo. O leal cachorro no fundo
compreende as agruras do dono e faz a gentileza de ganhar a vida por
ele. O leão e o tigre se amesquinham na jaula. 
Gato não. Ele só aceita
uma relação de independência e afeto. E como não cede ao
 homem, mesmo
quando dele é dependente, é chamado de arrogante, egoísta, safado,
espertalhão ou falso.

"Falso", porque não aceita a nossa falsidade com ele e só admite afeto
com troca e respeito pela individualidade. O gato
 não gosta de alguém
porque precisa gostar para se sentir melhor. Ele gosta pelo amor que
lhe é próprio, que é dele e ele o dá se quiser.

O gato
 devolve ao homem a exata medida da relação que dele parte.
Sábio, é espelho.
O gato
 é zen. O gato é Tao. Ele conhece o segredo da não-ação que não é inação.
Nada pede a quem não o quer.

Exigente com quem ama, mas só depois de muito certificar-se.
Não pede amor, mas se lhe dá, então ele exige.

Sim, o gato
 não pede amor. Nem depende dele. Mas, quando o sente,é
capaz de amar muito. Discretamente, porém sem derramar-se. O gato
 é um
italiano educado na Inglaterra. Sente como um italiano mas se comporta
como um lorde inglês.

Quem não se relaciona bem com o próprio inconsciente não transa o
gato. Ele aparece, então, como ameaça, porque representa essa relação
precária do homem com o (próprio) mistério. O gato
 não se relaciona
com a aparência do homem. Ele vê além, por dentro e pelo avesso.
Relaciona-se com a essência. Se o gesto de carinho é medroso ou
substitui inaceitáveis (mas existentes) impulsos secretos de agressão,
o gato
 sabe. E se defende do afago. A relação dele é com o que está
oculto, guardado, e nem nós queremos, sabemos ou podemos ver. Por
isso, quando surge nele um ato de entrega, de subida no colo ou
manifestação de afeto, é algo muito verdadeiro, que não pode ser
desdenhado. É um gesto de confiança que honra quem o recebe, pois
significa um julgamento.

O homem não sabe ver o gato
, mas o gato sabe ver o homem. Se há
desarmonia real ou latente, o gato
 sente. Se há solidão, ele sabe e
atenua como pode (ele que enfrenta a própria solidão de maneira muito
mais valente que nós). Se há pessoas agressivas em torno ou carregadas
de maus fluidos, ele se afasta. Nada diz, não reclama. Afasta-se. Quem
não o sabe "ler" pensa que ele não está ali. Presente ou ausente, ele
ensina e manifesta algo. Perto ou longe, olhando ou fingindo não ver,
ele está comunicando códigos que nem sempre (ou quase nunca) sabemos
traduzir.

O gato
 vê mais e vê dentro e além de nós. Relaciona-se com fluidos,
auras, fantasmas amigos e opressores. O gato
 é médium, bruxo,
alquimista e parapsicólogo. É uma chance de meditação permanente a
nosso lado, a ensinar paciência, atenção, silêncio e mistério. O gato

é um monge portátil à disposição de quem o saiba perceber.

Monge, sim, refinado, silencioso, meditativo e sábio monge, a nos
devolver as perguntas medrosas, esperando que encontremos o caminho na
sua busca, em vez de o querer preparado, já conhecido e trilhado. O
gato sempre responde com uma nova questão, remetendo-nos à pesquisa
permanente do real, à busca incessante, à certeza de que cada segundo
contém a possibilidade de criatividade e de novas inter-relações,
infinitas, entre as coisas.

O gato
 é uma lição diária de afeto verdadeiro e fiel. Suas
manifestações são íntimas e profundas. Exigem recolhimento, entrega,
atenção. Desatentos não agradam os gatos. Bulhosos os irritam. Tudo o
que precise de promoção ou explicação, quer afirmação. Vive do
verdadeiro e não se ilude com aparências. Ninguém em toda natureza
aprendeu a bastar-se (até na higiene) a si mesmo como o gato
!

Lição de sono e de musculação, o gato
 nos ensina todas as posições de
respiração ioga. Ensina a dormir com entrega total e diluição
recuperante no Cosmos. Ensina a espreguiçar-se com a massagem mais
completa em todos os músculos, preparando-os para a ação imediata. Se
os preparadores físicos aprendessem o aquecimento do gato
, os
jogadores reservas não levariam tanto tempo (quase 15 minutos) se
aquecendo para entrar em campo. O gato
 sai do sono para o máximo de
ação, tensão e elasticidade num segundo. Conhece o desempenho preciso
e milimétrico de cada parte do seu corpo, o qual ama e preserva como a
um templo.

Lição de saúde sexual e sensualidade.
Lição de envolvimento amoroso com dedicação integral de vários dias.
Lição de organização familiar e de definição de espaço próprio e
território pessoal.
Lição de anatomia, equilíbrio, desempenho muscular.
Lição de salto.
Lição de silêncio.
Lição de descanso.
Lição de introversão.
Lição de contato com o mistério, com o escuro, com a sombra.
Lição de religiosidade sem ícones.
Lição de alimentação e requinte.
Lição de bom gosto e senso de oportunidade.
Lição de vida, enfim, a mais completa, diária, silenciosa, educada,
sem cobranças, sem veemências, sem exigências.
O gato
 é uma chance de interiorização e sabedoria posta pelo mistério
à disposição do homem.

Esse "estudo" é da autoria de nosso finado senador  Arthur da Távola que destoava da maioria dos políticos brasileiros. Ele era escritor, poeta, professor, jornalista e apresentador do excelente programa "Quem tem medo da música clássica". Depois de seu texto e sua descrição, não sobra nada para eu falar. Melhor você perder apenas 17 segundos da sua vida, mas aproveite e aumente o som para curtir.





É apenas o que eu acho...



P.S.: As patas, com a suave textura

De borracha, e as unhas

Violentas de renhuras, escondem

A dupla face de um caráter

Tranquilo mas astuto.

por Tércia Montenegro

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